quarta-feira, 31 de dezembro de 2008

Supralegalidade dos Tratados Internacionais. Impossibilidade da Prisão Civil do Depositário Infiel.

Sob a ótica do Direito Internacional moderno, que se implementou logo após a primeira grande guerra mundial, as relações que envolvem dois ou mais Estados soberanos são pautadas pelo consensualismo e pela autonomia da vontade. E o instrumento formal que materializa estes acordos de vontades, independentemente da sua conceituação específica, denomina-se “tratado”.
Com precisão, conceituando este instrumento, a Convenção de Viena de 1969, em seu art. 2°, item I, dispõe que o tratado “é um acordo internacional celebrado por escrito entre Estados regidos pelo Direito Internacional, quer inserido num único instrumento, quer em dois ou mais instrumentos conexos, qualquer que seja a sua denominação específica”.
Pois bem. Antes do advento da Emenda Constitucional 45/2004, todo tratado internacional, ao ser incorporado pelo ordenamento jurídico brasileiro, adquiria status de lei ordinária. Dito de outra forma, além de se submeter ao controle de constitucionalidade, estava ele em situação de paridade com as demais legislações infraconstitucionais, podendo estas, inclusive, valendo-se do critério cronológico (lex posterior derogat priorem), revoga-lo total ou parcialmente.
Ocorre que após a promulgação e publicação da supra-aventada emenda, que, aligeire em sublinhar, acrescentou o §3° ao art. 5° da Constituição Federal, os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais. In casu, mormente sujeito ao controle de constitucionalidade, já não estará no mesmo nível das legislações infraconstitucionais que com ele, agora, devem ser compatíveis.
Portanto, a partir da promulgação da EC 45/2004, ou o tratado será incorporado com status de lei ordinário ou com de emenda à constituição. Na primeira hipótese quando ele não se adeque às condições impostas pelo supracitado art. 5°, §3°, da Carta Magna, seja versando sobre direitos humanos ou não; na segunda hipótese, ao revés, quando o seu procedimento de incorporação perfeitamente se amoldar a este parágrafo constitucional.
Mas não pára por aí...
Trazendo à baila novo entendimento, amparando-se, para tanto, nos ordenamentos jurídicos alemão, francês e Grego, o Ministro Gilmar Mendes, no julgamento do Recurso Extraordinário de n° 466.343, defendeu, em seu voto, a supralegalidade dos tratados internacionais que versem sobre direitos humanos.
Com precisão, assim se manifestou. Frise-se: “(...) parece mais consistente a interpretação que atribui a característica de supralegalidade aos tratados e convenções de direitos humanos. Essa tese pugna pelo argumento de que os tratados sobre direitos humanos seriam infraconstitucionais, porém, diante de seu caráter especial em relação aos demais atos normativos internacionais, também seriam dotados de um atributo de supralegalidade. Em outros termos, os tratados sobre direitos humanos não poderiam afrontar a supremacia da Constituição, mas teriam lugar especial reservado no ordenamento jurídico. Equipará-los à legislação ordinária seria subestimar o seu valor especial no contexto do sistema de proteção dos direitos da pessoa humana”.
Seguindo este raciocínio e amoldando-o ao que lastreado no art. 5°, §3°, da Lei Maior, mesmo que um tratado internacional sobre diretos humanos não seja incorporado ao ordenamento jurídico brasileiro pelo procedimento mais árduo esculpido no parágrafo acima citado, ele, muito embora submisso à Carta da República, encontrar-se-á em um nível hierárquico superior às legislações infraconstitucionais. Valendo-se de outros termos, este tratado não terá o condão de revogar as legislações infraconstitucionais conflitantes, mas, de outra banda, tais legislações terão sua eficácia suspensa, enquanto vigorar o que entoado por ele.
À evidência, a Convenção Americana sobre Direitos Humanos – Pacto de San José da Costa Rica, a qual o Brasil é aderente, mormente não incorporada pelo procedimento lastreado no parágrafo constitucional acima já mencionado, seria a supralegal e, com isso, teria o efeito de paralisar a eficácia das normas infraconstitucionais com ela conflitantes.
Acabaria, portanto, a prisão civil do depositário infiel. Isso porque tal pacto, em seu art. 7, item 7, apenas admite a prisão civil pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia.
E o entendimento da supralegalidade dos tratados internacionais que versem sobre direitos humanos foi acolhido, recentemente, pelo plenário do Supremo Tribunal Federal[1]. À evidência, frise-se o que foi decidido:

Em conclusão de julgamento, o Tribunal concedeu habeas corpus em que se questionava a legitimidade da ordem de prisão, por 60 dias, decretada em desfavor do paciente que, intimado a entregar o bem do qual depositário, não adimplira a obrigação contratual — v. Informativos 471, 477 e 498. Entendeu-se que a circunstância de o Brasil haver subscrito o Pacto de São José da Costa Rica, que restringe a prisão civil por dívida ao descumprimento inescusável de prestação alimentícia (art. 7º, 7), conduz à inexistência de balizas visando à eficácia do que previsto no art. 5º, LXVII, da CF (“não haverá prisão civil por dívida, salvo a do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do depositário infiel;”). Concluiu-se, assim, que, com a introdução do aludido Pacto no ordenamento jurídico nacional, restaram derrogadas as normas estritamente legais definidoras da custódia do depositário infiel. Prevaleceu, no julgamento, por fim, a tese do status de supralegalidade da referida Convenção, inicialmente defendida pelo Min. Gilmar Mendes no julgamento do RE 466343/SP (...).

Logo, percebe-se que, atualmente, impossível é encontrar escoro para a legitimação da prisão civil do depositário infiel no ordenamento jurídico brasileiro. Muito embora a Constituição admita esta possibilidade, o Pacto de San José da Costa Rica, com status de supralegalidade, mormente submisso à Lei Maior, paralisa a eficácia das legislações infraconstitucionais que disciplinam este tipo de prisão.
Ademais, aligeire em destacar que este novo posicionamento adotado pelo Supremo fundamentou a expressa revogação da súmula 619 que assim previa: “A prisão do depositário judicial pode ser decretada no próprio processo em que se constituiu o encargo, independentemente da propositura de ação de depósito[2]”.
Ante o exposto, conclui-se que a legitimidade da prisão civil do depositário infiel não mais representa o atual entendimento da Suprema Corte. Fazendo uso de outras palavras, qualquer decisão judicial em sentido contrário, além das hipóteses recusais ou, até, do pedido de reconsideração, como sucedâneo recursal, pode embasar uma reclamação constitucional dirigida ao Supremo, com fundamento, para tanto, na garantia da autoridade de suas decisões. Tudo em conformidade com o art. 102, inciso l, da Constituição Federal e, bem assim, com a Lei n° 8.038/90.
Luiz Ferreira Tôrres Neto

[1] Informativo 531.
[2] Informativo 531.

segunda-feira, 17 de novembro de 2008

Sistema Administrativo adotado pelo Brasil. Principais distinções entre o sistema inglês e o francês.

Sabe-se que à Administração Pública foram conferidas certas prerrogativas impraticáveis pelos particulares. Isso porque, dentre as suas atribuições, ela sempre deve buscar a efetividade do princípio da supremacia do interesse público sobre o particular.
Contudo, em um “Estado Democrático de Direito”, a Administração Pública, mormente voltada para a consecução do interesse público, limita-se a restrições previstas tanto pela Constituição Federal quanto pelas legislações infraconstitucionais. Tais restrições, outrossim, principalmente amparadas pelo princípio da indisponibilidade do interesse público.
Em síntese: a atuação administrativa encontra barreiras intransponíveis no próprio ordenamento jurídico que, por sinal, regula a sua conduta frente à sociedade, tentando evitar atitudes arbitrárias dos administradores sobre os administrados.
Ocorre que, nem sempre, o direito material é respeitado. Quero dizer: nem sempre a administração (o administrador) pauta a sua conduta em estrita obediência ao que entoado pela lei ou, até mesmo, pela própria Carta Maior, desrespeitando, por vezes, com a sua comissão ou omissão, o administrado.
Isto posto, indaga-se: lesado por uma conduta administrativa, estaria o particular obrigado a recorrer às instâncias administrativas ou, independentemente desas, poderia, de imediato, socorrer-se ao Poder Judiciário? A resposta, contudo, depende do sistema administrativo que foi acolhido pelo ordenamento jurídico pátrio de determinado país.
Atualmente, dois sistemas merecem especial enfoque, quais sejam, o francês e o inglês. Aquele, adotando a dualidade jurisdicional, confere à Administração Pública parcela da jurisdição, impondo o necessário contencioso administrativo para as causas em que ela seja parte. Fazendo uso de outras palavras: o particular, lesado por uma conduta administrativa, não poderia recorrer ao Poder Judiciário, mas, sim, única e exclusivamente, à própria administração e sua decisão, dotada de jurisdição, faria coisa julgada material. Por sua vez, o sistema inglês determina que o titular exclusivo da jurisdição é o Poder Judiciário e as decisões emanadas pela Administração Pública, em um procedimento administrativo, não seriam dotadas do instituto da “coisa julgada”, podendo ser revistas pelo Poder supra-aventado.
O Brasil, como se percebe, adotou o sistema inglês, não existindo, em nosso ordenamento, o já mencionado contencioso administrativo. Ou seja, aqui, o particular lesado pela administração possui três possibilidades: a) recorrer à Administração Pública e esperar a sua decisão última, ciente de que, a posteriori, pode valer-se do Poder Judiciário; b) ignorar as instâncias administrativas e, de imediato, valer-se das instâncias judiciais; ou c) recorrer à Administração Pública e, antes de sua decisão última, abandonar o procedimento administrativo para buscar amparo no detentor único da jurisdição.
E a adoção a esse sistema fica amplamente demonstrada quando nos debruçamos na Carta Magna do 1988, especificamente em seu art. 5°, inciso XXXV, que estabelece: “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça de direito”.
Porém, aligeire em sublinhar que a inafastabilidade do Poder Judiciário não é um princípio de obediência absoluta. É que, enquanto a própria Carta Constitucional expressamente o excepciona, mesmo que temporariamente, nos dissídios desportivos, a jurisprudência do STF exige, como condição imprescindível para a impetração do Habeas Data, a recusa administrativa em fornecer as informações que o impetrante tem direito de saber.
Outro ponto digno de nota é que, mormente o particular, no Brasil, possa buscar a tutela juducial, posteriormente da administrativa, tal prerrogativa, por questões lógicas, não é conferida à administração. Ora, se foi dela que emanou a decisão administrativa, não pode ela valer-se do Judiciário para tentar desconstituir sua própria decisão.

Luiz Ferreira Tôrres Neto[1]

[1] Advogado e pós-graduando em Direito Constitucional.

sábado, 15 de novembro de 2008

Teoria da transcendência dos motivos determinantes da sentença no controle difuso de constitucionalidade

Por ser uma Constituição rígida, todas as normas infraconstitucionais devem amoldar-se ao que entoado pela Lei Maior de 1988. O controle de constitucionalidade, portanto, é um instrumento do ordenamento jurídico voltado para garantir a compatibilidade vertical das normas infraconstitucionais frente à Constituição Federal.
Podendo ser repressivo (sobre uma lei ou um ato normativo, propriamente dito) ou preventivo (incidindo sobre um projeto de lei) e recaindo em um ato comissivo ou omissivo, o controle de constitucionalidade brasileiro é híbrido, existindo tanto na forma concentrada quanto na difusa. Isso porque, o Brasil adotou o sistema jurisdicional misto.
Na forma concentrada, um único órgão do Poder Judiciário tem a competência originária para decidir a constitucionalidade ou a inconstitucionalidade de uma lei ou um ato normativo frente à Carta da República, no nosso caso o STF. Regra geral, nesta forma de controle, a constitucionalidade ou a inconstitucionalidade é o pedido principal da petição inicial, não estando, a lei ou o ato normativo, objeto de impugnação, atrelado a qualquer caso concreto. Justamente por isso é que os efeitos da decisão são, em regra: “ex tunc”, vinculante e “erga omnes”.
Por sua vez, o controle difuso é um pouco mais democrático, permitindo que qualquer juiz ou tribunal, de forma incidental, decida sobre a constitucionalidade ou inconstitucionalidade de uma lei ou ato normativo frente à Carta da República, quando conste como preliminar intransponível para a avaliação do pedido principal da causa. Trata-se, portanto, de um controle de constitucionalidade que incide no caso concreto, onde a constitucionalidade ou a inconstitucionalidade de uma lei ou ato normativo é um pedido secundário, operando efeitos, em regra, “inter partes” e “ex tunc”.
Entretanto, quando, em via recursal, o controle difuso de constitucionalidade bate às portas do Supremo Tribunal Federal, este poderá comunicar sua decisão ao Senado Federal, momento em que, agindo discricionariamente, tal órgão do Poder Legislativo, por meio de resolução, pode conferir efeitos “erga omnes” e “ex nunc” a uma decisão que outrora foi “inter partes” e “ex tunc”. A resolução do Senado Federal, portanto, tem uma natureza constitutiva, fazendo com que uma decisão, emanada do controle difuso, surta os seus efeitos em toda a sociedade, do momento da publicação da resolução em diante.
Bem, este é o entendimento tradicional que se pauta pela “Separação dos Poderes” e por expressa disposição constitucional, qual seja: o art. 52, X, da CF de 1988.
Ocorre que, atualmente, existe uma teoria que, gradativamente, ganha força no Supremo. É a chamada “Teoria da transcendência dos motivos determinantes da sentença no controle difuso”. E, basicamente, o que tal teoria defende?
Destacando-se dois importantes precedentes (“Mira Estrela” e a “progressão do regime na lei de crime hediondos”), a decisão da Suprema Corte, no controle difuso de constitucionalidade, desde o início, já teria eficácia contra todos – “erga omnes”, cabendo ao Senado a mera atribuição de publicá-la. A respeito, frise-se o que foi dito por Gilmar Mendes no informativo 454 do STF:

“...reputou ser legítimo entender que, atualmente, a fórmula relativa à suspensão de execução da lei pelo Senado há de ter simples efeito de publicidade, ou seja, se o STF, em sede de controle incidental, declarar, definitivamente, que a lei é inconstitucional, essa decisão terá efeitos gerais, fazendo-se a comunicação àquela Casa Legislativa para que publique a decisão no Diário do Congresso...”.

E digo mais...
Em sua obra, “O papel do Senado no controle de constitucionalidade: um caso clássico de mutação constitucional”, o Ministro Gilmar Mendes se ampara na mutação constitucional (avanço social do entendimento que se dá a um dispositivo constitucional) como instrumento a justificar a aplicabilidade da transcendência dos motivos determinantes da sentença no controle difuso de constitucionalidade. Essas são as suas palavras:

“...possível, sem qualquer exagero, falar-se aqui de uma autêntica mutação constitucional em razão da completa reformulação do sistema jurídico e, por conseguinte, da nova compreensão que se conferiu à regra do art. 52, X, da Constituição de 1988. Valendo-nos dos subsídios da doutrina constitucional a propósito da mutação constitucional, poder-se-ia cogitar aqui de uma autêntica ‘reforma da Constituição sem expressa modificação do texto’...”.

Quer dizer: com amparo nesta teoria, o Senado não mais estaria incumbido de constituir uma eficácia “erga omnes” de uma decisão proferida pelo STF no controle difuso de constitucionalidade que, a priori, apenas incidiria perante as partes. O Supremo Tribunal Federal, no próprio controle difuso, já teria o condão de dar efeitos “erga omnes” à sua decisão, tendo o Senado Federal a mera atribuição de publicá-la no seu Diário Oficial. Sedutora é esta teoria e, sem sombra de dúvidas, representa uma inovação que consagra, dentre outros princípios, a economia processual. Contudo, esta inovação não representa o entendimento majoritário e pacificado do Tribunal Superior. Enquanto não houver mais pronunciamentos a respeito, o entendimento tradicional ainda terá plena aplicabilidade. Resta-nos aguardar.

Luiz Ferreira Tôrres Neto[1]
[1] Advogado e pós-graduando em Direito Constitucional pela Faculdade de Direito da Caruaru-PE.

sexta-feira, 14 de novembro de 2008

Não Incidência do Imposto de Renda sobre a Indenização por Danos Morais. Críticas a este atual entendimento do STJ.


Luiz Ferreira Tôrres Neto[1]

Sumário: 1. Considerações iniciais. 2. Breve análise do imposto de renda. 3. Danos Morais. 4. Não incidência do imposto de renda sobre a indenização por danos morais. Críticas a este atual entendimento do STJ. 5. Considerações finais.


1. Considerações iniciais

O presente trabalho, rebatendo atual entendimento do Superior Tribunal de Justiça (STJ), tem como escopo demonstrar que a efetiva indenização por danos morais se submete à incidência do imposto de renda e proventos de qualquer natureza (IR). Isso porque a vítima experimenta um acréscimo patrimonial e, com isso, preenche-se o fato gerador da espécie tributária acima citada.
Em um primeiro momento, limitar-me-ei a traçar uma breve análise do imposto de renda. A competência para a sua criação, a sua natureza e, com isso, a sua finalidade econômica, os princípios a que se submete e, por fim, o que seria “renda” e “proventos” para fins de sua incidência no caso concreto.
Já em um segundo momento, breves comentários acerca do dano moral serão realizados. Sua conceituação e, bem ainda, o que poderia ser considerado como seu fato gerador.
Por último e em um terceiro momento, demonstrarei que o IR incide sobre a indenização por danos exclusivamente morais. Para tanto, trarei à baila recente entendimento do STJ a respeito e, bem assim, críticas construtivas acerca de tal matéria.
Este artigo, portanto, aspira apresentar uma visão crítica sobre assunto de destacado relevo no campo tributário, convicto da idéia de que não podemos nos acostumar às iniqüidades.

2. Breve análise do imposto de renda

De competência privativa da União, o imposto de renda e proventos de qualquer natureza (IR) é eminentemente fiscal. Quer dizer: regra geral, sua finalidade precípua é a de arrecadar pecúnia para os cofres do Estado[2].
Constitucionalmente, está amparado pelos princípios da generalidade, universalidade e progressividade. Enquanto que o primeiro e o segundo consagram a possibilidade de o IR incidir em todas as rendas e proventos existentes (generalidade) de todas as pessoas que adquiriram tais rendas ou proventos (universalidade), a progressividade efetiva o princípio da isonomia e da capacidade contributiva, impondo que o IR recaia de forma mais significativa naquele que auferiu, em um espaço de tempo, mais renda ou proventos[3].
O termo “renda”, nos termos do Código Tributário Nacional[4] (CTN), pode ser definido como o produto do capital, do trabalho ou da combinação de ambos. O produto do capital seria o acréscimo pecuniário decorrente de uma aplicação financeira, por exemplo. O produto do trabalho seria o desconto no salário ou no vencimento recebido pelo empregado ou servidor público, respectivamente, no final do mês. Já a combinação de ambos seria, para fins de ilustração, o pro labore recebido pelos sócios de uma empresa.
Por outro lado, a expressão “proventos” seria todo o acréscimo patrimonial do sujeito passivo da relação tributária que não se enquadre como renda.
Ora, como claramente de percebe, para fins de hipótese de incidência do IR, basta que o sujeito passivo perceba um aumento patrimonial. Se não enquadrado como renda, por exclusão, será considerado como proventos.
Por último, resta observar que tal espécie tributária ainda está submetida aos princípios da estrita legalidade tributária (no que pertine à majoração de suas alíquotas, especialmente) e da anterioridade do exercício financeiro. Não se submete à anterioridade nonagesimal, podendo ter suas alíquotas majoradas no último dia de um exercício financeiro para já ter aplicabilidade no próximo dia útil do ulterior exercício.

3. Danos Morais

O dano moral, diferentemente do patrimonial, atinge o ofendido como pessoa e não o seu patrimônio. Ultrapassada a discussão acerca da possibilidade ou não da indenização por danos morais[5], atualmente, doutrina e jurisprudência aceitam tal possibilidade. Nos dizeres de Carlos Roberto Gonçalves[6] a indenização por danos morais “não representa a medida nem o preço da dor, mas uma compensação, ainda que pequena, pela tristeza e dor infligidas injustamente a outrem”. E tal compensação se manifesta por meio de um valor pecuniário, definido pelo Poder Judiciário, dirigido à vítima do dano. Quer dizer: além de tentar compensá-la moralmente, este determinado valor pecuniário acarreta, por conseguinte, um aumento no seu patrimônio.
Mas, o que causaria um dano moral? Um simples aborrecimento, mágoa, irritação. Ou, bem ao revés, uma dor, vexame, sofrimento, que fogem à razoabilidade. Muito embora não haja um critério exato a respeito, é claro que, pelo bom senso, uma simples mágoa, irritação ou, até, aborrecimento cotidiano não são suficientes para ensejar uma eventual ação por danos morais. Para que se justifique tal ação, faz-se necessário que a dor, o vexame, a humilhação, fujam à normalidade e, com isso, tragam duradouros transtornos psíquicos à vítima. Com precisão, são os ensinamentos de Sérgio Cavalieri. In verbis:

“Deve-se reputar como dano moral, a dor, vexame, sofrimento ou humilhação que, fugindo à normalidade, interfira intensamente no comportamento psicológico do indivíduo, causando-lhe aflições, angústias e desequilíbrio em seu bem-estar. Mero dissabor, aborrecimento, mágoa, irritação ou sensibilidade exacerbada estão fora da órbita do dano moral, porquanto, além de fazer parte do nosso dia-a-dia, no trabalho, no trânsito, entre os amigos e até no ambiente familiar, tais situações não são intensas e duradouras, a ponto de romper o equilíbrio psicológico do indivíduo.[7]

Isto posto, o dano moral é uma conseqüência de um sofrimento, vexame, dor, que, fugindo à normalidade, atinja psiquicamente a vítima, causando-lhe, de forma duradoura, sentimentos que a levam à humilhação. Uma indenização por tal dano buscaria uma compensação pecuniária pelo sofrimento sentido e, com isso, um aumento patrimonial seria sentido pela vítima.

4. Não incidência do imposto de renda sobre a indenização por danos morais. Críticas a este atual entendimento do STJ.

Conforme supra-aventado, a hipótese de incidência do tributo em comento é o acréscimo patrimonial do sujeito passivo decorrente da aquisição, em determinado período de tempo, de renda ou provento.
Logicamente, a indenização por danos morais não está enquadrada no conceito de “renda”. Contudo, tal indenização, sem sombra de dúvidas, representa um aumento patrimonial do autor da ação e, com isso, mormente não se enquadre no conceito de “renda”, subsume-se ao que é entendido por “provento”.
À primeira vista, portanto, perfeitamente possível seria a incidência do IR sobre o valor da indenização por danos morais. Inclusive, este entendimento tem amparo no Resp 748.868-RS, julgado em 28/08/2007.
Entretanto, recente julgado decidido pela 1° Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ)[8], pacificando, diga-se de passagem, a sua jurisprudência, firmou orientação em sentido contrário, qual seja: fazendo uso de outras palavras, a indenização por danos morais não representa um acréscimo patrimonial, mas, sim, uma compensação pecuniária pelo sofrimento degustado pela vítima. Como não representa um aumento patrimonial decorrente do produto do capital, do trabalho ou da combinação de ambos, mas, sim, como já dito, uma compensação pecuniária decorrente do sofrimento da vítima, este tipo de indenização não se amolda ao termo “renda” e, com isso, descaracterizada está a hipótese de incidência da espécie tributária aqui estudada.
Nesta senda, oportuno é o teor do julgado. Note-se:

“A indenização por dano estritamente moral não é fato gerador do Imposto de Renda, pois se limita a recompor o patrimônio imaterial da vítima, atingido pelo ato ilícito praticado. O entendimento da Primeira Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ) é o de que a negativa da incidência do Imposto de Renda não se dá por isenção, mas pelo falo de não ocorrer riqueza nova capaz de caracterizar acréscimo patrimonial.A questão foi definida em um recurso especial da Fazenda Nacional contra decisão do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (RS), que, ao apreciar mandado de segurança, reconheceu o benefício fiscal à verba recebida, confirmando decisão da primeira instância.A ação foi apresentada pelo advogado gaúcho Elton Frederico Volker contra ato do delegado da Receita Federal em Porto Alegre, buscando afastar a incidência do Imposto de Renda sobre a verba indenizatória. O contribuinte recebeu R$ 6 mil de indenização do Estado do Rio Grande do Sul como ressarcimento por danos morais relativos a falhas administrativas que, dentre outros problemas, provocaram a expedição equivocada de ordem de prisão em seu nome. O fato que gerou a ação de indenização foi um assalto no qual levaram todos os documentos de Volker. Um mês depois, ele soube pelo noticiário que um assaltante de uma agência de turismo foi preso e identificado com o seu nome. Três anos depois, esse assaltante fugiu do presídio e foi expedida ordem de prisão no nome de Elton Frederico Volker. O advogado só teve conhecimento da confusão quando recebeu ordem de prisão ao tentar renovar a Carteira Nacional de Habilitação, prisão que só não ocorreu porque conseguiu provar todas as circunstâncias. No recurso ao STJ, A Fazenda Nacional argumentava que a indenização representa acréscimo patrimonial. Sustentava, ainda, ser impossível conceder isenção por falta de fundamento legal, uma vez que somente a lei poderia deferir a exclusão do crédito tributário. O relator do recurso no STJ, ministro Herman Benjamin, entendeu que a verba recebida a título de dano moral não acarreta acréscimo patrimonial e, por isso, não se sujeita à incidência do Imposto de Renda. Para o relator, ‘a indenização por dano estritamente moral não é fato gerador do Imposto de Renda, pois se limita a recompor o patrimônio imaterial da vítima, atingido pelo ato ilícito praticado. Ao negar a incidência do Imposto de Renda, não se reconhece a isenção, mas a ausência de riqueza nova - oriunda dos frutos do capital, do trabalho ou da combinação de ambos – capaz de caracterizar acréscimo patrimonial. A indenização por dano moral não aumenta o patrimônio do lesado, apenas o repõe, pela via da substituição monetária, in statu quo ante [no mesmo estado em que se encontrava antes]’. O ministro Herman Benjamin ressaltou que ‘a tributação da reparação do dano moral, nessas circunstâncias, reduziria a plena eficácia material do princípio da reparação integral, transformando o Erário simultaneamente em sócio do infrator e beneficiário da dor do contribuinte. Uma dupla aberração. Destaco que as considerações feitas no presente voto, referentes à incidência do IR sobre o dano moral, restringem-se às pessoas físicas enquanto possuidoras, por excelência, dos direitos da personalidade e das garantidas individuais, consagrados no princípio constitucional da dignidade da pessoa humana’. Após voto-vista do Ministro Francisco Falcão, acompanhando integralmente o relator, a Seção, por maioria, vencido o ministro Teori Albino Zavascki, concluiu pelo afastamento da tributação pelo IR sobre a indenização por dano moral. O julgamento pacifica a questão nas duas turmas que integram a Primeira Seção, responsável pela apreciação das causas referentes a Direito Público.[9]” (grifo nosso)

Ocorre que, sem embargo da decisão aventada, o eminente Relator esqueceu-se que o fato gerador do imposto de renda não é apenas a aquisição do patrimônio decorrente do produto do capital, do trabalho ou da combinação de ambos (preenchendo o conceito de renda). Bem ao contrário, o fato que gera a incidência de tal espécie tributária é, também, a aquisição de proventos de qualquer natureza que, por sua vez, traduz-se em todo o aumento patrimonial suportado pelo sujeito passivo da relação tributária que não se enquadre no conceito de renda.
A indenização por danos morais, como diversas vezes já comentada, acarreta um aumento patrimonial da vítima. Logo, muito embora não se enquadre no conceito de renda, tal acréscimo se amolda ao termo “provento” e, com isso, permite a incidência do imposto de renda e proventos de qualquer natureza ao caso concreto.

5. Considerações Finais

Por todo o exposto, percebe-se que a indenização por danos morais se submete à incidência do imposto de renda e proventos de qualquer natureza. Isso porque, muito embora não seja caracterizada como “renda”, este tipo de indenização acarreta um acréscimo patrimonial à vítima do dano moral. Por trazer tal acréscimo, mormente não se enquadre no conceito de renda, perfeitamente se amolda ao que definido como “proventos”, um dos fatos geradores do supracitado imposto.
Muito embora decisão judicial em sentido contrário, claro e evidente torna-se a incidência do IR sobre a indenização por danos exclusivamente morais. Como já demonstrado, além de promover uma satisfação à vítima do dano, esta indenização acarreta, também, um aumento no seu patrimônio e, com isso, mais do que justificável é a incidência do já tão mencionado imposto.


REFERÊNCIAS

ALEXANDRE, Ricardo. Direito Tributário Esquematizado. 1 ed. São Paulo: Método, 2007.

CAVALIERI, Sérgio. Programa de Responsabilidade Civil. 2 ed. São Paulo: Malheiros, 2007.

GONÇALVES, Carlos Roberto. Responsabilidade Civil. 4 ed. São Paulo: Saraiva, 2007.

LEGISLAÇÃO

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.

BRASIL. Código Civil de 2002.

ENTENDIMENTO JURISPRUDENCIAL

BRASIL, Superior Tribunal de Justiça. Resp. 963387/RS – RIO GRANDE DO SUL. Relator: Ministro Herman Beijamim, DF, 20/06/2007. Disponível em: http://www.stj.gov.br/portal_stj/publicacao/engine.wsp?tmp.area=398&tmp.texto=89640. Acesso em 29/10/2008.

[1]Advogado e pós-graduando em Direito Constitucional.
[2]Deve-se ressaltar que o IR também possui natureza extrafiscal. É que, por ser progressivo, incide significativamente naquele que possui mais patrimônio, ao passo que, ao detentor de pouco patrimônio, nada exige ou pouco é exigido, consagrando a isonomia e promovendo a redistribuição de renda.
[3]Neste mesmo sentido: ALEXANDRE, Ricardo. Direito Tributário Esquematizado. São Paulo: Método, 1ed., 2007, p. 506.
[4]Art. 43. O imposto, de competência da União, sobre a renda e proventos de qualquer natureza tem como fato gerador a aquisição da disponibilidade econômica ou jurídica: I - de renda, assim entendido o produto do capital, do trabalho ou da combinação de ambos; II - de proventos de qualquer natureza, assim entendidos os acréscimos patrimoniais não compreendidos no inciso anterior.
[5] Principalmente após a promulgação da Constituição Federal de 1988 e do advento do Código Civil de 2002.
[6]GONÇALVES, Carlos Roberto. Responsabilidade Civil. São Paulo: Saraiva, 4 ed., p. 107.
[7]CAVALIERI, Sérgio. Programa de Responsabilidade Civil. São Paulo: Malheiros, 2 ed, p. 78.
[8]Noticiada na página do Tribunal, no dia 17/10/2008.
[9]BRASIL, Superior Tribunal de Justiça. Resp. 963387/RS – RIO GRANDE DO SUL. Relator: Ministro Herman Beijamim, DF, 20/06/2007. Disponível em: http://www.stj.gov.br/portal_stj/publicacao/engine.wsp?tmp.area=398&tmp.texto=89640. Acesso em 29/10/2008.