quarta-feira, 31 de dezembro de 2008

Supralegalidade dos Tratados Internacionais. Impossibilidade da Prisão Civil do Depositário Infiel.

Sob a ótica do Direito Internacional moderno, que se implementou logo após a primeira grande guerra mundial, as relações que envolvem dois ou mais Estados soberanos são pautadas pelo consensualismo e pela autonomia da vontade. E o instrumento formal que materializa estes acordos de vontades, independentemente da sua conceituação específica, denomina-se “tratado”.
Com precisão, conceituando este instrumento, a Convenção de Viena de 1969, em seu art. 2°, item I, dispõe que o tratado “é um acordo internacional celebrado por escrito entre Estados regidos pelo Direito Internacional, quer inserido num único instrumento, quer em dois ou mais instrumentos conexos, qualquer que seja a sua denominação específica”.
Pois bem. Antes do advento da Emenda Constitucional 45/2004, todo tratado internacional, ao ser incorporado pelo ordenamento jurídico brasileiro, adquiria status de lei ordinária. Dito de outra forma, além de se submeter ao controle de constitucionalidade, estava ele em situação de paridade com as demais legislações infraconstitucionais, podendo estas, inclusive, valendo-se do critério cronológico (lex posterior derogat priorem), revoga-lo total ou parcialmente.
Ocorre que após a promulgação e publicação da supra-aventada emenda, que, aligeire em sublinhar, acrescentou o §3° ao art. 5° da Constituição Federal, os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais. In casu, mormente sujeito ao controle de constitucionalidade, já não estará no mesmo nível das legislações infraconstitucionais que com ele, agora, devem ser compatíveis.
Portanto, a partir da promulgação da EC 45/2004, ou o tratado será incorporado com status de lei ordinário ou com de emenda à constituição. Na primeira hipótese quando ele não se adeque às condições impostas pelo supracitado art. 5°, §3°, da Carta Magna, seja versando sobre direitos humanos ou não; na segunda hipótese, ao revés, quando o seu procedimento de incorporação perfeitamente se amoldar a este parágrafo constitucional.
Mas não pára por aí...
Trazendo à baila novo entendimento, amparando-se, para tanto, nos ordenamentos jurídicos alemão, francês e Grego, o Ministro Gilmar Mendes, no julgamento do Recurso Extraordinário de n° 466.343, defendeu, em seu voto, a supralegalidade dos tratados internacionais que versem sobre direitos humanos.
Com precisão, assim se manifestou. Frise-se: “(...) parece mais consistente a interpretação que atribui a característica de supralegalidade aos tratados e convenções de direitos humanos. Essa tese pugna pelo argumento de que os tratados sobre direitos humanos seriam infraconstitucionais, porém, diante de seu caráter especial em relação aos demais atos normativos internacionais, também seriam dotados de um atributo de supralegalidade. Em outros termos, os tratados sobre direitos humanos não poderiam afrontar a supremacia da Constituição, mas teriam lugar especial reservado no ordenamento jurídico. Equipará-los à legislação ordinária seria subestimar o seu valor especial no contexto do sistema de proteção dos direitos da pessoa humana”.
Seguindo este raciocínio e amoldando-o ao que lastreado no art. 5°, §3°, da Lei Maior, mesmo que um tratado internacional sobre diretos humanos não seja incorporado ao ordenamento jurídico brasileiro pelo procedimento mais árduo esculpido no parágrafo acima citado, ele, muito embora submisso à Carta da República, encontrar-se-á em um nível hierárquico superior às legislações infraconstitucionais. Valendo-se de outros termos, este tratado não terá o condão de revogar as legislações infraconstitucionais conflitantes, mas, de outra banda, tais legislações terão sua eficácia suspensa, enquanto vigorar o que entoado por ele.
À evidência, a Convenção Americana sobre Direitos Humanos – Pacto de San José da Costa Rica, a qual o Brasil é aderente, mormente não incorporada pelo procedimento lastreado no parágrafo constitucional acima já mencionado, seria a supralegal e, com isso, teria o efeito de paralisar a eficácia das normas infraconstitucionais com ela conflitantes.
Acabaria, portanto, a prisão civil do depositário infiel. Isso porque tal pacto, em seu art. 7, item 7, apenas admite a prisão civil pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia.
E o entendimento da supralegalidade dos tratados internacionais que versem sobre direitos humanos foi acolhido, recentemente, pelo plenário do Supremo Tribunal Federal[1]. À evidência, frise-se o que foi decidido:

Em conclusão de julgamento, o Tribunal concedeu habeas corpus em que se questionava a legitimidade da ordem de prisão, por 60 dias, decretada em desfavor do paciente que, intimado a entregar o bem do qual depositário, não adimplira a obrigação contratual — v. Informativos 471, 477 e 498. Entendeu-se que a circunstância de o Brasil haver subscrito o Pacto de São José da Costa Rica, que restringe a prisão civil por dívida ao descumprimento inescusável de prestação alimentícia (art. 7º, 7), conduz à inexistência de balizas visando à eficácia do que previsto no art. 5º, LXVII, da CF (“não haverá prisão civil por dívida, salvo a do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do depositário infiel;”). Concluiu-se, assim, que, com a introdução do aludido Pacto no ordenamento jurídico nacional, restaram derrogadas as normas estritamente legais definidoras da custódia do depositário infiel. Prevaleceu, no julgamento, por fim, a tese do status de supralegalidade da referida Convenção, inicialmente defendida pelo Min. Gilmar Mendes no julgamento do RE 466343/SP (...).

Logo, percebe-se que, atualmente, impossível é encontrar escoro para a legitimação da prisão civil do depositário infiel no ordenamento jurídico brasileiro. Muito embora a Constituição admita esta possibilidade, o Pacto de San José da Costa Rica, com status de supralegalidade, mormente submisso à Lei Maior, paralisa a eficácia das legislações infraconstitucionais que disciplinam este tipo de prisão.
Ademais, aligeire em destacar que este novo posicionamento adotado pelo Supremo fundamentou a expressa revogação da súmula 619 que assim previa: “A prisão do depositário judicial pode ser decretada no próprio processo em que se constituiu o encargo, independentemente da propositura de ação de depósito[2]”.
Ante o exposto, conclui-se que a legitimidade da prisão civil do depositário infiel não mais representa o atual entendimento da Suprema Corte. Fazendo uso de outras palavras, qualquer decisão judicial em sentido contrário, além das hipóteses recusais ou, até, do pedido de reconsideração, como sucedâneo recursal, pode embasar uma reclamação constitucional dirigida ao Supremo, com fundamento, para tanto, na garantia da autoridade de suas decisões. Tudo em conformidade com o art. 102, inciso l, da Constituição Federal e, bem assim, com a Lei n° 8.038/90.
Luiz Ferreira Tôrres Neto

[1] Informativo 531.
[2] Informativo 531.